segunda-feira, 6 de março de 2017

CULTURAS E DISSÍDIOS

Apontamento 
sobre o Encontro de 18 e 19 de Fevereiro de 2017

Foi maior a afluência a este encontro, e a convivência, por entre os debates, as conversas e as refeições partilhadas em comum, foi francamente calorosa, contribuindo para isso todos os participantes, incluindo as crianças.
No sábado à tarde, Filipe Nunes, membro fundador do MAPA e um dos seus principais redactores, contextualizou a história singular deste jornal. Surgido há cinco anos, com sede em Setúbal e assente em vários núcleos distribuídos pelo país, conta também com colaborações regulares no exterior, em particular no Brasil, Espanha e França. É desde o início produzido em papel, por clara decisão do seu colectivo, disponibiliza em linha partes do conteúdo ou informações de carácter urgente e pela sua própria existência tem vindo a fomentar instigantes partilhas, encontros e acções. Graças a isso, circula em diversos lugares e constitui um acervo informativo de fácil acesso.  
Aspecto essencial que desde logo convém sublinhar, todo o trabalho deste jornal é feito por voluntários, que nele investem, não apenas trabalho intelectual e físico, mas também as suas economias. É importante tê-lo presente para compreender o que são as condições de uma informação independente em luta pela promoção de autonomias, a primeira das quais o livre pensamento. Quem quer que conheça o empenhado e diversificado conteúdo do MAPA poderá assim entender melhor o significado de uma experiência jornalística como esta, que só tem paralelo (ressalvando as diferentes circunstâncias históricas) com iniciativas de períodos anteriores como a do semanário Comércio do Funchal, iniciada em 1966 e que se prolongou até depois do 25 de Abril de 1974.
Nas circunstâncias actuais, pode dizer-se que o MAPA representa a liberdade de expressão que os jornais «normais» não têm, prisioneiros dos grupos financeiros seus proprietários e da autocensura ou conformismo que passou a vigorar no modus vivendi da maioria dos jornalistas profissionais. No debate suscitado pela estimulante apresentação de Filipe Nunes, levantou-se a certa altura, a este propósito, a questão de saber como é possível fazer jornalismo quando não se é profissional. Trata-se aqui, como é óbvio, de um outro jornalismo, independente de grupos económicos e que de modo espontâneo retoma, por exemplo, o lema exposto na síntese famosa do jornalista e escritor francês Albert Londres (1884-1932): «O nosso ofício não consiste em agradar, nem em prejudicar, consiste em revelar a chaga.» A possibilidade de se pôr em prática um jornalismo autónomo como o do MAPA depende sem dúvida de capacidades específicas, mas, sobretudo, da vontade de exercer tais capacidades em condições adversas; adversas, também, porque o interesse pela busca da verdade se tem vindo a reduzir nas minadas circunstâncias sociopolíticas subsequentes ao «pós-modernismo», que introduziu na apreensão do real uma relatividade política contaminada pelo vale tudo e tudo se vale.   
Sublinhou-se igualmente o facto de o MAPA não precisar, por decisão própria, de se apresentar com qualquer emblema identificativo formal (apelidando-se, por exemplo, «jornal libertário»); a sua identificação faz-se pelo conteúdo do que diz e formula, e não por declarações de princípio, o que representa um salto qualitativo no contexto da imprensa de afinidades anarquistas.
Nas condições portuguesas, o MAPA, jornal de periodicidade trimestral e com uma tiragem de 3000 exemplares, é uma experiência sui generis. As exigências de que dá mostras, inclusive no plano gráfico, apelam a uma sempre maior visibilidade e circulação. Porque é um importante reduto da liberdade.




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Pelas 18 h, a Joëlle propôs a todos uma sessão de musicoterapia. O nome desta disciplina presta-se amiúde a equívocos, por se deduzir, erradamente, que se trata de «ouvir música» ou de «tocar música». Isso pode acontecer, mas apenas como elemento aleatório. Trata-se, de facto, de recorrer a sonoridades, individuais e colectivas, com vista a apreender relações mais sensíveis, antes de mais da pessoa consigo mesma mas, obviamente, com os outros presentes. 
A oficina proposta decorreu de forma serena e entusiástica, com a alegria e criatividade associáveis a jogos gratuitos, aqueceu os espíritos e teve bons resultados. As crianças, perante a expressividade jubilosa dos adultos, entraram espontaneamente no jogo, sem ser preciso pedir-lhes que o fizessem e, ainda menos, sem ser necessário «controlá-las».

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No sábado à noite, o número recém-editado d’A Ideia – Revista de Cultura Libertária (Nº 77-80) foi apresentado por António Cândido Franco, seu editor e director. A primeira apresentação pública deste número d’A Ideia realizou-se em Lisboa, no Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, em 28 de Janeiro, foi muito concorrida e substancial, designadamente sobre o tema das prisões, e nela intervieram, além dos seus promotores, figuras como Cruzeiro Seixas e José Hipólito dos Santos. 
Na nossa sessão, chamou muito a atenção o impressionante volume que constitui este número quádruplo, de cujo sumário demos conta no convite para o encontro. ACF, completamente por dentro da extensíssima tábua das matérias, também por tê-la arquitectado, expôs, com a sua eloquência e o seu profundo conhecimento dos temas, os meandros, por vezes intrincados, que ligam entre si o abjeccionismo, o surrealismo e uma quadratura de autores aqui congregados por esse duplo íman (Sade, Bocage, Mariana Alcoforado, Lewis Carroll). ACF sublinhou que deve ser a primeira vez que o abjeccionismo (em parte nome especificamente português do surrealismo) é abordado de forma tão completa, «como ideia, como grupo, como movimento», incluindo correspondência de Luís Pacheco, Mário Cesariny, Natália Correia, José Cardoso Pires.
Podemos interrogar-nos sobre a funcionalidade de um volume tão extenso como este (434 páginas em formato quase A4) junto das mais jovens gerações libertárias, porventura menos propensas a leituras demoradas e ecléticas, e a textos de índole acentuadamente literária. Mas o subtítulo da revista, necessariamente abrangente e de amplo leque, para aí aponta. De resto, é importante expor a dimensão cultural do anarquismo (filosófica, literária, poética, artística), que atravessa, amiúde sem qualquer identificação «cunhada», as obras mais diversas vindas a lume em diferentes circunstâncias temporais e políticas. Mostra-o também este número d’A Ideia ao publicar a matéria do que teria sido, em 1966, a revista Abjecção, concebida por Cruzeiro Seixas e que, por força da censura, foi impossível editar nesse tempo.
Das muitas e relevantes contribuições que este número contém, gostaria de sublinhar, neste curto lembrete, «As prisões em Portugal no século XXI», de António Pedro Dores, empenhado sociólogo que tem dedicado incisivos trabalhos e intervenções a esta silenciada ignomínia; de Jorge Leandro Rosa, «A Ideia – o agora do depois» (texto da apresentação que leu na sessão do Museu do Aljube) e «A anarquia a partir do surrealismo», dois textos luminosos sobre o percurso de 40 anos desta revista: «só há anarquia aberta à metamorfose, à sua própria metamorfose antes do mais», «o interesse do anarquismo pelo surrealismo marca uma transição importante da sua própria história»; de José Hipólito Santos, o seu depoimento no II Congresso de Psicodrama Psicanalítico sobre o tema «Liberdades e submissão» e o texto sobre o cooperativismo de António Sérgio.
O debate que se seguiu à apresentação de António Cândido poderia ter-se prolongado pela noite fora. 

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No domingo, dia 19, da parte da manhã, Jorge Leandro Rosa, vindo do Porto, trouxe-nos uma análise e meditação substanciais sobre o actual significado político do movimento ecologista e sobre a dimensão dos problemas que têm vindo a avolumar-se na ecologia da Terra por força do modo de produção capitalista e das «alternativas» que este apresenta à sua própria produção de catástrofes. Do mesmo passo, JLR informou-nos sobre a próxima publicação, na colecção Viver é Preciso (criada por José Carlos Marques, no Porto, nos anos 70), de uma antologia de textos de Ivan Illich por ele organizada e traduzida. Na estratégia relativa à gestão das catástrofes sobressai a colossal amplitude do projecto de geoconstrutivismo do nosso planeta, que se propõe criar uma Terra 2. Quando falamos em fuga para a frente, esta será provavelmente a mais demencial.
Nos últimos quinze anos, os Estados deixaram de poder ignorar a questão ambiental e os desastres que lhe estão associados. Mas as COP (Conferências das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas) não ultrapassam tácticas falaciosas. Poderão aliás as agências governamentais agir de outro modo, imersas como estão na necessária mentira, organizada e «sofisticada»? Os debates dos climatologistas mostram que as condições prováveis dentro de meio século excluem a possibilidade de existência de seres humanos no planeta. No horizonte estão dois colapsos: o da espécie humana e o da revolução industrial.
Mas o tom apocalíptico do discurso não constitui uma autodefesa praticável, contribuindo mais propriamente para a paralisia do «salve-se quem puder» e do fatalismo. Sendo a revolução industrial uma questão de energia, e implicando a «conversão energética» sob a batuta dos Estados empresariais, é aqui que entra a reflexão fundamental de Illich sobre «Energia e equidade». Esta relação só poderá ter bases sólidas se forem as sociedades, directamente, a determiná-la. As sociedades contra o Estado.
Apesar das muitas interrogações e algumas perplexidades que a clara exposição de JLR suscitou, o debate, grandemente interrogativo (e é muito bom que assim seja), procurou reflectir sobre as necessárias pistas de que necessitamos como de pão para a boca.

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No domingo, depois do almoço partilhado, que reuniu um grande número de bem-dispostos comensais, o actor Nuno Pinto, recentemente chegado de Barcelona e vindo também do Porto, presenteou-nos com uma performance que tinha tudo que ver com o surrealismo: «Abracadadá – Voltaire ou a máquina de Proteu», inspirada nos 100 anos do Cabaret Voltaire, criado em Zurique, em 1915, no contexto da deflagração da I Guerra Mundial, por desertores, pacifistas e revoltosos dadá. Entre os poetas da sua predilecção, António Maria Lisboa e António José Forte, quase sempre presentes.


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Já à noite, tivemos ainda o prazer de contar com a calorosa presença de Paul, jovem activista francês e músico andarilho. Começou por nos apresentar as actividades dum colectivo internacionalista que luta contra o apoderamento dos recursos naturais da América Central (uma das mais ricas em biodiversidade) por empresas multinacionais de diversos ramos, a começar pelo farmacêutico e da energia, mostrando-nos um mapa extraordinário, de grandes dimensões, desta região do mundo, desenhado por esse colectivo. (Este mapa e outras informações podem ser consultados na Internet em beehivecollective.org.)
E depois regalou-nos com um recital, em que tocou, em instrumentos tradicionais, músicas mediterrânicas, cantando algumas canções árabes. Instrumentista de grande sensibilidade, o som do seu alaúde e do buzuki trouxeram para a atmosfera do nosso encontro de amizades, agora junto à lareira, novos motivos de encanto, que nos levaram seguramente a ter bons sonhos no fim destas duas absorventes jornadas. 
A todos os que partilharam as suas inspirações, trabalhos e fraternidade, o nosso abraço muito grato. (Sem esquecer a generosa contribuição do Manuel António para a poda e limpeza das árvores e arbustos.)

J.H.

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